domingo, 24 de agosto de 2014

A matéria escura na nossa Galáxia

Em meados da década de 70, três astrônomos mediram as velocidades rotacionais das nuvens moleculares gigantes de formação estelar na parte exterior do disco da Via Láctea. Eles constataram que a Via Láctea era abundante em matéria escura, especialmente em sua parte mais externa. Esse estudo foi um entre muitos dos anos 70 e 80 que forçaram os astrônomos a concluir que a matéria escura – uma substância misteriosa que não absorve nem emite luz e que se revelava por sua influência gravitacional – não só existe, mas também é o material dominante na constituição do Universo.
Medidas feitas com o satélite WMAP confirmam que a matéria escura apresenta cinco vezes mais massa que a matéria comum (prótons, nêutrons, elétrons). O que essa tal matéria/coisa realmente é permanece tão esquiva como sempre foi. É uma medida da nossa ignorância que a hipótese mais conservadora proponha que a matéria escura consista em uma partícula exótica, não detectada até agora nos aceleradores de partículas, predita por teorias sobre as matérias ainda não verificadas. A hipótese mais radical é que a lei gravitacional de Newton, e a relatividade geral de Einstein, estejam erradas ou, no mínimo, exijam modificações desagradáveis. A imagem acima mostra a matéria escura observada pela primeira vez. No link abaixo há mais informações sobre essa observação:
Qualquer que seja sua natureza, a matéria escura já está fornecendo pistas para resolver alguns quebra-cabeças relativos à como a Via Láctea apresenta algumas de suas características. Os astrônomos sabem há mais de 50 anos, por exemplo, que as partes exteriores da Galáxia são deformadas como um disco de vinil deixado sobre um aquecedor. Eles não puderam criar um modelo viável da deformação – até que considerassem os efeitos da matéria escura. De modo semelhante, as simulações computacionais da formação galáctica, baseadas nas propriedades da matéria escura, prediziam que nossa galáxia deveria estar envolta por centenas ou mesmo milhares de pequenas galáxias satélites. Mesmo assim, os observadores viam não mais que duas dúzias. A discrepância levou a um questionamento sobre se a matéria escura tinha as propriedades que se imaginava. Mas, nos últimos anos, vários grupos de astrônomos descobriram um tesouro escondido de galáxias-satélites anãs, reduzindo a disparidade.
Essas galáxias recém-localizadas não só estão auxiliando a solucionar mistérios sobre a estrutura galáctica, há muito pendentes, como também podem estar nos ensinando algo sobre o inventário cósmico total da matéria. Um primeiro passo, para a compreensão do que a matéria escura nos diz sobre a Via Láctea é tomar um quadro geral de como a galáxia é organizada. A matéria comum – estrelas e gás – reside em quatro estruturas maiores: um disco fino (que inclui o padrão espiral e a localização do sol), um núcleo denso (que também abriga um buraco negro supermassivo), um bojo alongado conhecido como a barra e um “halo” esferoidal que contém estrelas velhas e aglomerados e que envolve o resto da galáxia. A matéria escura tem um arranjo muito diferente. Embora não possamos vê-la, inferimos onde está a partir das velocidades de rotação das estrelas e do gás.
Seus efeitos gravitacionais sobre a matéria visível sugerem que está distribuída mais ou menos esfericamente e se estende muito além do halo estelar, com uma densidade mais alta no centro que vai diminuindo na proporção do quadrado da distância ao centro. Essa distribuição seria o resultado natural do que os astrônomos chamam de aglomeração hierárquica: a proposição de que, no universo inicial, galáxias menores se juntavam para formar maiores, incluindo a Via Láctea. Por anos a fios os astrônomos não puderam obter mais do que este quadro básico da matéria escura como uma esfera gigante e indiferenciada de material não identificado. Nos últimos anos, porém, conseguimos coletar mais detalhes, e a matéria escura se provou ainda mais interessante do que suspeitávamos. Várias linhas de evidência sugerem que esse material não é homogeneamente distribuído; mas exibe “encaroçamentos” em larga escala.
Essa disparidade explicaria a existência e o tamanho da deformação galáctica. Quando os astrônomos dizem que a galáxia é deformada, estamos nos referindo a uma distorção específica na periferia do disco. A distâncias superiores a cerca de 50 mil anos-luz do centro, o disco consiste quase que inteiramente em gás de hidrogênio atômico, com apenas umas poucas estrelas. Mapeado por radiotelescópios, o gás não se assenta no plano da Galáxia; quanto mais se afasta, mais ele se desvia. Até uma distância de aproximadamente 75.000 anos-luz, o disco se curvou cerca de 7.500 anos-luz para fora do plano. Evidentemente, conforme o gás gira em torno do centro da Galáxia, também oscila para cima e para baixo, dentro e fora do plano. Essas oscilações ocorrem em centenas de milhões de anos, e nós as capturamos apenas em um momento de seu ciclo. Em essência, o disco de gás age como uma espécie de gongo gigante vibrando em câmera lenta. Como um gongo, ele pode vibrar em múltiplas frequências, cada uma correspondendo a uma determinada forma da superfície.
Os radioastrônomos que primeiro perceberam a deformação, nos anos 50 pensaram que ela poderia resultar de forças gravitacionais exercidas pelas Nuvens de Magalhães, as galáxias mais massivas em órbita da Via Láctea. Devido a essas galáxias-satélites orbitarem fora do plano da Via Láctea, sua gravidade tenderia a distorcer o disco. Mas cálculos detalhados mostraram que essas forças são fracas demais para explicar o efeito, em virtude de as Nuvens de Magalhães serem insignificantes em comparação com a Via Láctea. Por décadas, a razão da pronunciada deformação permaneceu um problema não resolvido.

O reconhecimento de que a via láctea contém matéria escura, junto a novas estimativas da massa das Nuvens de Magalhães (que mostraram serem mais massivas que se pensava), levantaram uma nova possibilidade. Se o disco de gás age como um gongo, a órbita das Nuvens de Magalhães através do halo de matéria escura pode agir como uma baqueta a tocar o gongo, soando suas notas naturais ou frequências ressonantes, embora não diretamente. As nuvens criam um rastro na matéria escura, assim como um barco forma um rastro ao deslisar pela superfície da água. Dessa forma, as nuvens criam alguma irregularidade na distribuição da matéria escura. E isso atua como uma baqueta, produzindo um efeito mais intenso nas partes externas e menor na região menos densa do disco. O resultado é que, embora as Nuvens de Magalhães sejam insignificantes, a matéria escura amplifica seus efeitos.
Galáxias perdidas
Se a destruição de galáxias anãs levanta questões, sua formação também faz isso. Em nossos modelos atuais, galáxias começam como aglomerações de matéria escura que, então, acrescem gás e estrelas para formar sua parte visível. O processo produz não apenas galáxias de grande porte, como a nossa, mas também numerosas anãs. Os modelos acusam bem as propriedades dessas anãs, mas predizem muito mais delas do que se observa. A culpa é dos modelos ou das observações? Parte da resposta vem de novas análises do Sloan Digital Sky Survey, uma varredura sistemática de cerca de um quarto de todo o céu. Essa varredura (ou survey, termo geralmente usado em astronomia) identificou cerca de uma dúzia de novas e extremamente fracas galáxias em órbita da Via Láctea. A descoberta delas é surpreendente. O céu tem sido tão completamente vasculhado e por tanto tempo que é difícil imaginar como galáxias, em nossa vizinhança cósmica, permaneceram despercebidas todo esse tempo. Essas galáxias, conhecidas como anãs ultrafracas, contêm, em alguns casos, apenas algumas centenas de estrelas. Elas são tão tênues e difusas que não aparecem em imagens convencionaiss do céu; é preciso técnicas de tratamento de dados especiais para identificá-las.
Se o Sloan tivesse coberto o céu inteiro quando as galáxias ultrafracas foram detectadas, ele poderia ter encontrado outras 35 ou mais. Ainda assim, isso não daria conta de todas as anãs “perdidas”. Desse modo, os astrônomos têm procurado por outras possibilidades. Talvez haja mais galáxias lá fora, muito longe para que os telescópios as detectem. O Sloan pode detectar anãs ultrafracas até uma distância de 150 mil anos-luz. Erik Tollerud e seus colaboradores da University of California em Irvine predizem que por volta de 500 galáxias ainda não descobertas orbitam a Via Láctea a distâncias de até 1 milhão de anos-luz do centro. Os astrônomos deverão ser capazes de fazer essa detecção com um novo instrumento óptico, o Large Synoptic Survey Telescope, que terá oito vezes a área coletora do Sloan. 
Outra hipótese é que a Via Láctea seja orbitada por galáxias ainda mais fracas que a mais fraca das anãs ultrafracas – tão escuras que talvez nem tenham estrelas. Elas seriam quase que totalmente compostas por matéria escura. Se galáxias como essas puderem ser, algum dia, detectadas, dependerá de elas conterem gás, além da matéria escura. O gás, então, seria suficientemente difuso para resfriar muito devagar, num ritmo insuficiente para formar estrelas. Ainda assim, radiotelescópios vasculhando grandes áreas do céu poderiam fazer essa detecção. Se essas galáxias não contiverem gás, elas revelariam sua presença apenas indiretamente, pelo seu efeito gravitacional sobre a matéria convencional. Se uma dessas galáxias atravessar muito rápido o disco da Via Láctea, pode deixar um tipo de “respingo”, parecido com o produzido por uma pedra lançada em um lago de águas calmas – observáveis como perturbações na distribuição de velocidades das estrelas e do gás. Infelizmente, essas perturbações seriam muito pequenas, e os astrônomos teriam de se convencer de que elas não foram produzidas por outra coisa – uma tarefa intimidadora. Todas as galáxias espirais apresentam perturbações através de seu disco de hidrogênio atômico de modo semelhante a ondas no mar bravo.
Se essa galáxia escura for massiva o suficiente, um método desenvolvido por Sukanya Chakrabarti, agora na Florida Atlantic University, e vários colaboradores, incluindo a mim mesmo, pode fornecer as ferramentas necessárias para discernir sua passagem. Recentemente mostramos que as maiores perturbações na periferia das galáxias são, frequentemente, marcas de forças de maré deixadas por galáxias que por ali passam, e esse tipo de perturbação pode ser diferenciado de outros tipos. Ao analisar esses distúrbios podemos inferir a massa e a posição atual da galáxia intrusa. Essa técnica pode discernir galáxias tão pequenas quanto um milésimo da massa da galáxia primária. Aplicando o método à Via Láctea, nossa equipe inferiu que uma possível galáxia escura não descoberta esconde-se no plano da Via Láctea a aproximadamente 300 mil anos-luz do centro galáctico. Já existem planos para detectar essa galáxia no infravermelho próximo, usando dados coletados pelo Spitzer Space Telescope.
Muito pouca luz
bem à parte da dificuldade de encontrá-las, as galáxias ultrafracas e as galáxias escuras que estão na vizinhança da Via Láctea colocam uma questão para os astrônomos no que diz respeito à quantidade relativa de material que elas contêm. Geralmente, os astrônomos medem a quantidade de massa em uma galáxia em termos da razão massa- luminosidade, ou seja, a massa do material dividida pela quantidade de luz que ela libera. Tipicamente, damos a razão em unidades solares; o Sol, por definição, tem uma razão massa-luminosidade igual a 1. Em nossa galáxia, a estrela média, ou típica, é um pouco menos massiva e bem mais fraca que o Sol, de modo que a razão massa-luminosidade da matéria luminosa é próxima de 3. Incluindo a matéria escura, a razão massa-luminosidade total da Via Láctea pula para cerca de 30. Josh Simon, agora no Carnegie Institution of Washington, e Marla Geha, da Yale University, mediram a velocidade das estrelas em oito anãs ultrafracas para obter a massa e a luminosidade delas. Em alguns casos, a razão massa-luminosidade ultrapassou 1.000 – de longe a maior entre todas as estruturas no universo conhecido. No Universo como um todo, a razão entre matéria escura e ordinária é quase que exatamente 5. Por que a razão massa- luminosidade do sistema da Via Láctea é tão maior e das galáxias ultrafracas maior ainda?
A resposta pode estar no numerador ou no denominador da razão: galáxias com razão massa-luminosidade maior que a média universal ou têm mais massa que o esperado ou produzem menos luz. Os astrônomos acreditam que o denominador é o culpado. Uma grande quantidade de matéria convencional não brilha o suficiente para ser vista, ou porque nunca foi capaz de se assentar em galáxias e coalescer em estrelas, ou porque se assentou na galáxia, mas foi expelida de volta para o espaço intergaláctico, onde reside como uma forma ionizada de matéria indetectável pelos telescópios atuais. Galáxias de baixa massa, tendo gravidade mais fraca, perdem mais de seu gás, de modo que a saída de luz fica desproporcionalmente diminuída. Que curiosa ironia que o problema levantado por um tipo de matéria que não pode ser visto (matéria escura) dê origem a outro até então insuspeito (matéria convencional, que em princípio pode ser vista, mas é atualmente indetectável). O enigma da matéria escura, que permaneceu dormente por tantos anos, é agora um dos mais vibrantes ramos de pesquisa tanto em física como em astronomia. Físicos esperam identificar e detectar a partícula que compõe a matéria escura e os astrônomos estão procurando por mais pistas sobre como ela se comporta. Mas, enigma ou não, a matéria escura está provendo respostas a uma vasta gama de fenômenos astronômicos.


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