Em
meados da década de 70, três astrônomos mediram as velocidades
rotacionais das nuvens moleculares gigantes de formação estelar na
parte exterior do disco da Via Láctea. Eles constataram que a Via
Láctea era abundante em matéria escura, especialmente em sua parte
mais externa. Esse estudo foi um entre muitos dos anos 70 e 80 que
forçaram os astrônomos a concluir que a matéria escura – uma
substância misteriosa que não absorve nem emite luz e que se
revelava por sua influência gravitacional – não só existe, mas
também é o material dominante na constituição do Universo.
Medidas
feitas com o satélite WMAP confirmam que a matéria escura apresenta
cinco vezes mais massa que a matéria comum (prótons, nêutrons,
elétrons). O que essa tal matéria/coisa realmente é permanece tão
esquiva como sempre foi. É uma medida da nossa ignorância que a
hipótese mais conservadora proponha que a matéria escura consista
em uma partícula exótica, não detectada até agora nos
aceleradores de partículas, predita por teorias sobre as matérias
ainda não verificadas. A hipótese mais radical é que a lei
gravitacional de Newton, e a relatividade geral de Einstein, estejam
erradas ou, no mínimo, exijam modificações desagradáveis. A imagem acima mostra a matéria escura observada pela primeira vez. No link abaixo há mais informações sobre essa observação:
Qualquer
que seja sua natureza, a matéria escura já está fornecendo pistas
para resolver alguns quebra-cabeças relativos à como a Via Láctea
apresenta algumas de suas características. Os astrônomos sabem há
mais de 50 anos, por exemplo, que as partes exteriores da Galáxia
são deformadas como um disco de vinil deixado sobre um aquecedor.
Eles não puderam criar um modelo viável da deformação – até
que considerassem os efeitos da matéria escura. De
modo semelhante, as simulações computacionais da formação
galáctica, baseadas nas propriedades da matéria escura, prediziam
que nossa galáxia deveria estar envolta por centenas ou mesmo
milhares de pequenas galáxias satélites. Mesmo assim, os
observadores viam não mais que duas dúzias. A
discrepância levou a um questionamento sobre se a matéria escura
tinha as propriedades que se imaginava. Mas, nos últimos anos,
vários grupos de astrônomos descobriram um tesouro escondido de
galáxias-satélites anãs, reduzindo a disparidade.
Essas
galáxias recém-localizadas não só estão auxiliando a solucionar
mistérios sobre a estrutura galáctica, há muito pendentes, como
também podem estar nos ensinando algo sobre o inventário cósmico
total da matéria. Um
primeiro passo, para a compreensão do que a matéria escura nos diz
sobre a Via Láctea é tomar um quadro geral de como a galáxia é
organizada. A matéria comum – estrelas e gás – reside em quatro
estruturas maiores: um disco fino (que inclui o padrão espiral e a
localização do sol), um núcleo denso (que também abriga um buraco
negro supermassivo), um bojo alongado conhecido como a barra e um
“halo” esferoidal que contém estrelas velhas e aglomerados e que
envolve o resto da galáxia. A matéria escura tem um arranjo muito
diferente. Embora não possamos vê-la, inferimos onde está a partir
das velocidades de rotação das estrelas e do gás.
Seus
efeitos gravitacionais sobre a matéria visível sugerem que está
distribuída mais ou menos esfericamente e se estende muito além do
halo estelar, com uma densidade mais alta no centro que vai
diminuindo na proporção do quadrado da distância ao centro. Essa
distribuição seria o resultado natural do que os astrônomos chamam
de aglomeração hierárquica: a proposição de que, no universo
inicial, galáxias menores se juntavam para formar maiores, incluindo
a Via Láctea. Por
anos a fios os astrônomos não puderam obter mais do que este quadro
básico da matéria escura como uma esfera gigante e indiferenciada
de material não identificado. Nos últimos anos, porém, conseguimos
coletar mais detalhes, e a matéria escura se provou ainda mais
interessante do que suspeitávamos. Várias linhas de evidência
sugerem que esse material não é homogeneamente distribuído; mas
exibe “encaroçamentos” em larga escala.
Essa
disparidade explicaria a existência e o tamanho da deformação
galáctica. Quando os astrônomos dizem que a galáxia é deformada,
estamos nos referindo a uma distorção específica na periferia do
disco. A distâncias superiores a cerca de 50 mil anos-luz do centro,
o disco consiste quase que inteiramente em gás de hidrogênio
atômico, com apenas umas poucas estrelas. Mapeado por
radiotelescópios, o gás não se assenta no plano da Galáxia;
quanto mais se afasta, mais ele se desvia. Até uma distância de
aproximadamente 75.000 anos-luz, o disco se curvou cerca de 7.500
anos-luz para fora do plano. Evidentemente,
conforme o gás gira em torno do centro da Galáxia, também oscila
para cima e para baixo, dentro e fora do plano. Essas oscilações
ocorrem em centenas de milhões de anos, e nós as capturamos apenas
em um momento de seu ciclo. Em essência, o disco de gás age como
uma espécie de gongo gigante vibrando em câmera lenta. Como um
gongo, ele pode vibrar em múltiplas frequências, cada uma
correspondendo a uma determinada forma da superfície.
Os
radioastrônomos que primeiro perceberam a deformação, nos anos 50
pensaram que ela poderia resultar de forças gravitacionais exercidas
pelas Nuvens de Magalhães, as galáxias mais massivas em órbita da
Via Láctea. Devido a essas galáxias-satélites orbitarem fora do
plano da Via Láctea, sua gravidade tenderia a distorcer o disco. Mas
cálculos detalhados mostraram que essas forças são fracas demais
para explicar o efeito, em virtude de as Nuvens de Magalhães serem
insignificantes em comparação com a Via Láctea. Por décadas, a
razão da pronunciada deformação permaneceu um problema não
resolvido.
O
reconhecimento de que a via láctea contém matéria escura, junto a
novas estimativas da massa das Nuvens de Magalhães (que mostraram
serem mais massivas que se pensava), levantaram uma nova
possibilidade. Se o disco de gás age como um gongo, a órbita das
Nuvens de Magalhães através do halo de matéria escura pode agir
como uma baqueta a tocar o gongo, soando suas notas naturais ou
frequências ressonantes, embora não diretamente. As nuvens criam um
rastro na matéria escura, assim como um barco forma um rastro ao
deslisar pela superfície da água. Dessa forma, as nuvens criam
alguma irregularidade na distribuição da matéria escura. E isso
atua como uma baqueta, produzindo um efeito mais intenso nas partes
externas e menor na região menos densa do disco. O resultado é que,
embora as Nuvens de Magalhães sejam insignificantes, a matéria
escura amplifica seus efeitos.
Galáxias
perdidas
Se
a destruição de galáxias anãs levanta questões, sua formação
também faz isso. Em nossos modelos atuais, galáxias começam como
aglomerações de matéria escura que, então, acrescem gás e
estrelas para formar sua parte visível. O processo produz não
apenas galáxias de grande porte, como a nossa, mas também numerosas
anãs. Os modelos acusam bem as propriedades dessas anãs, mas
predizem muito mais delas do que se observa. A culpa é dos modelos
ou das observações? Parte da resposta vem de novas análises do
Sloan Digital Sky Survey, uma varredura sistemática de cerca de um
quarto de todo o céu. Essa varredura (ou survey, termo geralmente
usado em astronomia) identificou cerca de uma dúzia de novas e
extremamente fracas galáxias em órbita da Via Láctea. A descoberta
delas é surpreendente. O céu tem sido tão completamente vasculhado
e por tanto tempo que é difícil imaginar como galáxias, em nossa
vizinhança cósmica, permaneceram despercebidas todo esse tempo.
Essas galáxias, conhecidas como anãs ultrafracas, contêm, em
alguns casos, apenas algumas centenas de estrelas. Elas são tão
tênues e difusas que não aparecem em imagens convencionaiss do céu;
é preciso técnicas de tratamento de dados especiais para
identificá-las.
Se
o Sloan tivesse coberto o céu inteiro quando as galáxias
ultrafracas foram detectadas, ele poderia ter encontrado outras 35 ou
mais. Ainda assim, isso não daria conta de todas as anãs
“perdidas”. Desse modo, os astrônomos têm procurado por outras
possibilidades. Talvez haja mais galáxias lá fora, muito longe para
que os telescópios as detectem. O Sloan pode detectar anãs
ultrafracas até uma distância de 150 mil anos-luz. Erik Tollerud e
seus colaboradores da University of California em Irvine predizem que
por volta de 500 galáxias ainda não descobertas orbitam a Via
Láctea a distâncias de até 1 milhão de anos-luz do centro. Os
astrônomos deverão ser capazes de fazer essa detecção com um novo
instrumento óptico, o Large Synoptic Survey Telescope, que terá
oito vezes a área coletora do Sloan.
Outra hipótese é que a Via
Láctea seja orbitada por galáxias ainda mais fracas que a mais
fraca das anãs ultrafracas – tão escuras que talvez nem tenham
estrelas. Elas seriam quase que totalmente compostas por matéria
escura. Se galáxias como essas puderem ser, algum dia, detectadas,
dependerá de elas conterem gás, além da matéria escura. O gás,
então, seria suficientemente difuso para resfriar muito devagar, num
ritmo insuficiente para formar estrelas. Ainda assim,
radiotelescópios vasculhando grandes áreas do céu poderiam fazer
essa detecção. Se essas galáxias não contiverem gás, elas
revelariam sua presença apenas indiretamente, pelo seu efeito
gravitacional sobre a matéria convencional. Se uma dessas galáxias
atravessar muito rápido o disco da Via Láctea, pode deixar um tipo
de “respingo”, parecido com o produzido por uma pedra lançada em
um lago de águas calmas – observáveis como perturbações na
distribuição de velocidades das estrelas e do gás. Infelizmente,
essas perturbações seriam muito pequenas, e os astrônomos teriam
de se convencer de que elas não foram produzidas por outra coisa –
uma tarefa intimidadora. Todas as galáxias espirais apresentam
perturbações através de seu disco de hidrogênio atômico de modo
semelhante a ondas no mar bravo.
Se
essa galáxia escura for massiva o suficiente, um método
desenvolvido por Sukanya Chakrabarti, agora na Florida Atlantic
University, e vários colaboradores, incluindo a mim mesmo, pode
fornecer as ferramentas necessárias para discernir sua passagem.
Recentemente mostramos que as maiores perturbações na periferia das
galáxias são, frequentemente, marcas de forças de maré deixadas
por galáxias que por ali passam, e esse tipo de perturbação pode
ser diferenciado de outros tipos. Ao analisar esses distúrbios
podemos inferir a massa e a posição atual da galáxia intrusa. Essa
técnica pode discernir galáxias tão pequenas quanto um milésimo
da massa da galáxia primária. Aplicando o método à Via Láctea,
nossa equipe inferiu que uma possível galáxia escura não
descoberta esconde-se no plano da Via Láctea a aproximadamente 300
mil anos-luz do centro galáctico. Já existem planos para detectar
essa galáxia no infravermelho próximo, usando dados coletados pelo
Spitzer Space Telescope.
Muito
pouca luz
bem
à parte da dificuldade de encontrá-las, as galáxias ultrafracas e
as galáxias escuras que estão na vizinhança da Via Láctea colocam
uma questão para os astrônomos no que diz respeito à quantidade
relativa de material que elas contêm. Geralmente, os astrônomos
medem a quantidade de massa em uma galáxia em termos da razão
massa- luminosidade, ou seja, a massa do material dividida pela
quantidade de luz que ela libera. Tipicamente, damos a razão em
unidades solares; o Sol, por definição, tem uma razão
massa-luminosidade igual a 1. Em nossa galáxia, a estrela média, ou
típica, é um pouco menos massiva e bem mais fraca que o Sol, de
modo que a razão massa-luminosidade da matéria luminosa é próxima
de 3. Incluindo a matéria escura, a razão massa-luminosidade total
da Via Láctea pula para cerca de 30. Josh Simon, agora no Carnegie
Institution of Washington, e Marla Geha, da Yale University, mediram
a velocidade das estrelas em oito anãs ultrafracas para obter a
massa e a luminosidade delas. Em alguns casos, a razão
massa-luminosidade ultrapassou 1.000 – de longe a maior entre todas
as estruturas no universo conhecido. No Universo como um todo, a
razão entre matéria escura e ordinária é quase que exatamente 5.
Por que a razão massa- luminosidade do sistema da Via Láctea é tão
maior e das galáxias ultrafracas maior ainda?
A
resposta pode estar no numerador ou no denominador da razão:
galáxias com razão massa-luminosidade maior que a média universal
ou têm mais massa que o esperado ou produzem menos luz. Os
astrônomos acreditam que o denominador é o culpado. Uma grande
quantidade de matéria convencional não brilha o suficiente para ser
vista, ou porque nunca foi capaz de se assentar em galáxias e
coalescer em estrelas, ou porque se assentou na galáxia, mas foi
expelida de volta para o espaço intergaláctico, onde reside como
uma forma ionizada de matéria indetectável pelos telescópios
atuais. Galáxias de baixa massa, tendo
gravidade mais fraca, perdem mais de seu gás, de modo que a saída
de luz fica desproporcionalmente diminuída. Que curiosa ironia que o
problema levantado por um tipo de matéria que não pode ser visto
(matéria escura) dê origem a outro até então insuspeito (matéria
convencional, que em princípio pode ser vista, mas é atualmente
indetectável). O enigma da matéria escura, que permaneceu dormente
por tantos anos, é agora um dos mais vibrantes ramos de pesquisa
tanto em física como em astronomia. Físicos esperam identificar e
detectar a partícula que compõe a matéria escura e os astrônomos
estão procurando por mais pistas sobre como ela se comporta. Mas,
enigma ou não, a matéria escura está provendo respostas a uma
vasta gama de fenômenos astronômicos.
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